terça-feira, 30 de novembro de 2010

Naquela tade





Eu havia selado o meu destino naquela tarde. Esvaziei-me ao máximo até sumir de mim. Não sei por quanto tempo estive ausente e nem se consegui esperar essas palavras nascerem nesse momento. O meu aqui e agora nunca se completou na realidade, e toda ilusão que projetei foi só para satisfazer o meu ego.
Pergunto-me por que nada do que planejei aconteceu como sonhei? Todos os meus sonhos, as minhas façanhas de querer ser outro nunca deram em nada. No fundo eu sempre fora o mesmo. Mas quando digo outro é por desejo de me libertar das minhas amarras, como se ser outro fosse uma saída. Então forcei os acontecimentos ao meu bel prazer. Corri em busca de acreditar que seria a minha chance de me reconhecer no outro. Tudo que fiz foi projetar uma mentira que me adoeceu a alma. Em função disto aprovei a minha separação de mim mesmo. Atingi o nirvana, o éter. Antes eu pensava que era maior que tudo isso, que seria ao menos parte de tudo que havia sonhado. Mas a realidade não muda só porque eu creio nessa minha loucura. Antes eu ainda conseguia inventar coisas pra mim mesmo, pensando que tudo naquele momento nascia para pode vir a ser, mas nada, nada, nada... Um cheiro de cajá verde ali na minha infância ainda predomina pra provar que vivi e que tive um passado. Essa louca mania de achar que só o que já passou, o que está no passado é que serve de provar quem somos. As ilusões do mundo me fascinam. E o pior, acabei acreditando que tudo isso era verdade.
Andei afastado demais de mim, sem noção das coisas a minha volta, sem conseguir dar conta das noites mal dormidas, da dormência das minhas mãos, da nitidez do mal que andou a me consumir. A loucura tornou-me um grande pensador, um desbravador de mentes, como se tudo que eu quisesse saber fosse possível apenas com estalar dos dedos. Agora penso que respiro, mas nem sei o que é respirar. Não faço idéia do que seja essa coisa chamada vida, na qual todos se apóiam como uma tábua rasa.
A realidade aqui fora anda bem mais louca do que a minha projetada cá dentro de mim. Admito que antes as coisas ainda tinham um por que de ser, mas hoje tudo se perdeu. Quando atrelei a minha vontade ao ter foi porque eu achava que assim viveria melhor. Mas essa coisa de desejar é uma grande ilusão às avessas. Tenho medo hoje até do que quero comer, porque não sei se o gosto da primeira garfada terá o gosto do que realmente desejei. Os sentidos poderiam sofrer mudanças, invertidos que fossem, mas ao menos recuariam nessa mania de adiantar as coisas, de projetar o futuro como a única saída pra se ter felicidade.

Marcos Vidal

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Anti-Manhã

Perto dali
longe de tudo
o inverso das folhas
quase rouba minha visão

Ainda trago no peito
serpentinas da noite passada
traz mais!
digo louco
perto da lucidez
traz mais tudo,
pois o pouco não tem vez!

Sobre a ladeira
o fio do tempo
se desfez
Ponto escuro, tormenta
da boca que inventa
eu trago o absurdo
troco e inverto
não mais o que está desfeito
Globo, Terra
macro e micro
total invalidez

Ronco debruçado
sobre o bem-te-vi
manhã de sono
lenta e singela

Dos olhos brotam avidez
vitupérios azulejados
quase um crime
quando relógios emparedados
anunciam o dia.

Vi Dalí
derretendo o tempo
formando bolhas de ilusão
na fogueira dos ciganos
colorido de ternura
vida que se mistura
quando roubo a sensatez
dos espelhos
que diante de mim mesmo
de-forma a minha tez.

Perto dali
anti-manhã desassossegada
flores abrem imaginadas
guardam segredos
de cores
dessas que não revelam
o Deus que tem em si.

Marcos Vidal

domingo, 31 de outubro de 2010

Tem dias




Tem dias como hoje
que salto para fora de mim
andando por aí
sem saber dizer
quem sou
como se o rio corresse
ao contrário
e as garças
descansassem luz.

Há dias que o meu
peito ecoa brisa
e nessa lentidão
retorcendo o meu penar
fui levando
minha alma
antes mesmo
dela acordar.

Hora bebo luz
soerguendo cicatriz
noite alta, névoa branca
quase posso tocar
minhas lembranças
nessa força motriz.

Meu deslinde
à luz do dia
feito sob chuva fina
dessas que marcam a pele
pois, mesmo que me revele
não vou florir mais não.

Tem dias como hoje
que o cinza do dia escurece-me
e mesmo o meu lado mais azul
no branco da neve arrefece

Buscando servir a tormenta
agora de nada adianta
pois, cansado de tanta lembrança
na estrada velha e barrenta
a criança que chora e senta
deixa voar a esperança.


Marcos Vidal

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Flor de Algodão





De repente o silencio se fez.
Procurei no céu nuvens e não te vi.
Cá embaixo um volume incongruente de transeuntes torna-se coisas; eles se deslocam à procura de algo, que também não sabem o quê.
No rosto deles reflexo do meu espanto.
E você diz: “Sim, existe um motivo”.
Eu, de olhos brancos, tonto de buscar nos algodoeiros o mesmo efeito da neve; trago ainda os pés congelados por insistir soprar a flor do algodão.
Mas bem ali, a beira da saudade o mar português, abismado da minha lucidez inebriante, colhias de ti, enquanto tu nadavas uma simples lágrima de suor. No meu sonho verbal tu nadavas. Acordei com a pele ainda salgada, trazia e traduzia a tatuagem vista ao contrário no espelho. De repente um forte gosto de nuvem de algodão tomou-me de pronto. Violinos firmes gotejavam em si a me segurar ilusoriamente, mas cheio de certeza me guardei.


Marcos Vidal

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sala de Poesia





Cadeiras em circulo
sala de poesia
profundidade...
Abruma a voz
antes dos antúrios
e aproveita pra
guardar o portão
antes do esquecimento
que preso no vento
vai doer noutro lugar.

A voz diz
que poesia
é ritmar o silêncio
é guardar o não dito
nas entrelinhas Fugaz
porque quem tem
medo não faz
e o medo de desandar
maresia é que borra o branco
da folha na solidão
das nuvens.

O fundo não tem dentro
quando tudo
é escuridão
Ser demais
não tem veneno
não ajuda
a imaginação.


Marcos Vidal

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Não vou...

Não vou sumir de mim
Na névoa da desilusão
Nem vou quebrar o azul lá fora
Nem vou deitar
No meu agora
Nem fingir solidão
Não devo mais enternecer-me
Na luxuria da contramão
Não vou chorar
Não vou gritar
Nem estripar coração
Não vou gozar de dor
Nem arrefecer no licor a minha solidão
Nem alimentar essa louca obsessão
Não vou guardar impulsos
Nem drogas na paixão
Não vou rezar à toa
Nem ser a mesma pessoa
Nem viver mais de ilusão.


Marcos Vidal

sábado, 11 de setembro de 2010

Não vim provocar resposta




Não vim provocar resposta
nem guardar o teu silêncio
vim simplesmente dizer adeus.

Natural e solene
como o sol que se vai todas as tardes.

Não vim provocar resposta
nem dizer o que não sinto

Quanto não minto em mim?

Provocar os mares
quando tudo é calmaria
não vai molhar a boca
seca de palavras.

Vim, esguelhado,
torto e mal amado
assumir meu desalinho
nesse redemoinho
híbrido de nós dois.


Marcos Vidal

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Estou sendo

Talvez sejam palavras de brisa num verão escaldante de intenções vazias, suadas. Loucura de vento.
Como querer enfrentar um inimigo às seis da tarde numa cidade fantasma? Loucura com preço e sensatez. Como se fosse possível projetar o real sem fantasia. Mas o que realmente vejo? Queria ser pela metade. O meu vazio é não ser. No entanto, sou!
Sou uma invenção de mim a extrapolar o real. Coisa cheia de falsa moral, surdo de regras. Faço e refaço o meu interior o tempo todo. Mas o correto é dizer que não. No entanto, sou sem cor, transparente. E me vejo assim, a seguir pela vida inteira sem me trair, como se tudo fosse um grande teatro nesse mundo vertiginoso. Sou eu mesmo o meu mestre. Eu invento e sigo pelas vielas como quem não quer saber de nada, alimentando-me de coisas pequenas, estirado numa cama que não vai guardar a minha história.
Eu estou sendo. E estar sendo é tumultuado. Porque quando se está sendo não se tem certeza de nada. A não ser do presente, que será o meu passado e nunca o meu futuro. Mas sou de mim mesmo o meu próprio carrasco. Sou como os objetos, estou por aí, e às vezes não me percebo. Nunca essa coisa de ficar estático, e continuo preso nas masmorras da estima rasteira. Areia fina de praia. Sol disfarçado de luz amarela, esquálido.


Marcos Vidal

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A moralidade do homem pós-moderno




Às vezes o mundo do sonho é melhor que o da realidade. Toda ideologia se faz à luz da nossa verdade. Brigamos para sermos entendidos, lutamos para ser quem somos sem amarras ou nuvens. O céu azul esconde estrelas que não conseguimos enxergar. De nós, somos desconhecidos. Nada é o que aparenta na verdade, pois no teatro da vida somos personagens mal definidos, talvez caricaturas do que pensamos que somos. Inventamos às vezes um outro ser para brincar no teatro da vida como se não houvesse amanhã. De nada temos certeza, ou melhor, apenas uma, a morte. Esta sim nos coloca no nosso lugar de seres efêmeros que se guardam em torno de uma moral, buscando com isso o reconhecimento dos outros. No entanto, como nos diz Nietsche, “a moralidade não é outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais) senão a obediência aos costumes, sejam eles quais forem. Ora, os costumes são maneira tradicional de agir e de avaliar”.
O homem pós-moderno quebra com a tradição, é a ruptura da ruptura, e talvez por isso incomode a sua maneira fragmentária de se colocar na sociedade contemporânea. O homem pós-moderno é desprovido de coisas e restos. A sua genealogia transborda em torno da sua lógica. No entanto, esta não é uma lógica racional, pois quando nos deixamos levar pelo sentimento que o inconsciente nos apresenta, abrimos uma porta e deixamos que o caminho que se siga a este, seja uma possibilidade. Nos jogamos cegamente neste caminho cego, e ao longo de nossa caminhada podemos ver um jardim sem flores, um sol sem luz, uma nesga de ser esquecido em uma encruzilhada difusa, sem a expectativa devida de se poder continuar sendo. Escolhemos os nossos caminhos e a nossa moral de acordo com a nossa verdade. Assim como Nietzsche, também acredito no homem imoral. Escreve o filósofo: “O homem livre é imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida”. Assim, acreditamos no novo homem, um ser que segue a sua ousadia, a sua necessidade, a sua verdade. O individualismo tão em voga hoje, estabelece uma norma mediante o prazer de cada um. E este, por ser imprevisível, vai ditando regras e possibilidades que levam ao homem de hoje a necessidade de sempre, a de sua felicidade. A moral sempre seguiu a expectativa da educação, do corpo, da religião, da guerra, de uma inteligência superior que ordena mediante a sua crença. Pois crer aqui, é muito mais do que ter a certeza; crer aqui, é estabelecer uma verdade e seguir com ela, mesmo sabendo que essa verdade possa ser falsa.
A tradição sempre impôs uma moral, sempre fez valer as suas observações sem pensar em si mesmo como indivíduo, a partir dos seus desejos; ela sempre fez valer a sua razão, a sua verdade. O que podemos pensar sobre o conceito de verdade, se só conhecemos o que a tradição nos dita? Toda vez que o homem, ou um país quer se tornar independente de idéias, há guerras. O homem é movido por conflitos, no entanto, quando não sabemos bem o porquê, danamos a iludi-lo de verdade, bem fixa, como se o real pudesse significar alguma coisa dentro disso.
A realidade das coisas está sempre sendo moldada pela verdade dos outros. Nunca somos quem gostaríamos de ser. Gostar aqui está muito mais ligado ao que a tradição sempre pesou como algo verdadeiro, bom e inteligente. Sempre estamos a fazer política, estamos sempre negociando algo que nos traga prazer, esse é o lado moral, o imoral é aquele que segue a sua própria verdade, a sua própria necessidade que o faz se sentir gente na sociedade.
A grandeza do sonho admite tudo, até ser infeliz, desde que seja por seu bel prazer e não por uma imposição emergencial de quem acredita que a realidade seja melhor do que o sonho. Pois, quando paramos de sonhar é porque chegamos ao fim.


Marcos Vidal

sábado, 31 de julho de 2010

Em busca de um poema




Atravesso a palavra

ainda sangrando...

Meu delírio

projeta símbolos e metáforas.

Arrasto-me em busca

da melodia única.

Súbito, a ânsia

rouba-me o verso.



Atravesso a palavra...

sem freio

sem umbigo

corpo sem carne

restos de símbolos

reverso significado

de sentidos.

Marcos Vidal

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ao Manoel de Barros





Corre no Manoel
uma raiz por dentro
que me galha.

E quando o vento
sopra ao contrário
voando com
os passarinhos
sem asas
eu me nuvem
me vermelho
coisa de instante.

Atrás da tarde
uma garça me destoa
ali onde a neblina
me empulha
e os beija-flores
descansam asas.

Perto do rio
um peixe descama.
Acendo um vaga-lume
pra preencher o verde
sem casa.

Atrás da chuva
o vento grita
um verbo infantil
desses que animam cores
em coice de cavalo

Quando eu me coiso
me diviniso
respiro Deus e
aspiro borboletas
entupidas de flores

Dentro do eco
mora um grilo
que roça árvores com os pés
em busca do som
da abelha
na lã de papel.

Quando me resto
encontro-me.
No corpo do besouro
a noite é mais escura

Sentado sobre o horizonte
Disse-me Manoel:
"De tarde arborizo pássaros"
eu breve de nuvem rasa
dos versos que o poeta
guarda
dirijo a amplidão.

Pousa em mim
um verso aquário
dos verbos
do meu poeta
Manoel de Barros.





Marcos Vidal






domingo, 25 de abril de 2010

Felicidade... onde?

















Sabe essa dependência pela felicidade, irritante utopia que nunca sai de moda? Pois é, continuo correndo sem parar, de coração na mão a gritar em busca dessa tal felicidade. Sei que é isso que nos move, mas, estou cansado de querer enxergar felicidade onde não existe. Nos quadros de galerias, no som das ondas do mar, no passarinho da cidade que, mesmo perdido de seu habitat natural, consegue cantar seu canto de felicidade. Em tudo eu a procuro.

E quando uma doença da alma, um tremor do corpo, uma falsa ilusão, uma casa sem cômodos, sem objetos, estanca essa procura, me pergunto: Então é isso... a felicidade é sem adorno? Vazia? O que ela preenche na verdade? E todo mundo dizendo que é coisa de instante. Você é pessimista, logo dizem. Não... eu sou realista. Essa onda de dizer coisas só pra agradar, pra dizer que está feliz é balela.

A felicidade é sem escrúpulo, cega, irritante quando se atrasa, pôr do sol a sumir no horizonte, fugaz. Então por que corremos tanto, se já sabemos que é só um piscar de olhos? Porque a felicidade não tem forma, ela é a luz do sonho possível, a mentira eterna que passamos a chamar de verdade, a razão de estarmos vivos.




Marcos Vidal

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Silêncio

Teu silêncio

corre com o vento

lá fora.

Eu pequenino

diante da aurora

pensei escrever

a nossa história.

Mas tua calma

sem voz

perto do rio

palra-me trítonos.

Teu silêncio

retumbante

que na índia

faz coro aos elefantes

desnorteia-me.

Tua voz sem teia

já não gorjeia

a lembrança em mim.

Dizem que o silêncio

tem poesia

Eu breve de minha agonia

não perco mais solidão

Teu silêncio

ainda corre com o vento

lá fora

e o tempo que não é

o meu agora

grita pleno:

vai-te embora

que o meu olho

cansado já chora.

Marcos Vidal




segunda-feira, 5 de abril de 2010

O engolidor de palavras



Para o jovem Rodolpho Fonseca.



Poesia é voar fora da asa.

Manoel de Barros



O relógio ainda nem despertou e lá esta ele a caçar palavras no dicionário a fim de responder as imagens do sonho que lhe acompanharam madruga adentro. A mente parece que seca com o sonho, diz ele. Sempre arruma desculpas para ir ao dicionário. Pela manhã foi o sonho. Mas no decorrer do dia, lá vinha àquela necessidade de encontrar palavras que pudessem ajudá-lo a entender o tempo de sua caminhada matinal de casa até o colégio. Era na verdade uma vontade de decodificar os acontecimentos do dia a dia. Uma mente poética nunca cessa de apreender coisas, principalmente quando existe a possibilidade de entender a si mesmo e o mundo a sua volta.

Após estabelecer em sua mente os signos necessários seguiu tranqüilo em sua rotina. Depois da leitura do dicionário passou ao banheiro. Tomou uma ducha (sempre fria para espantar as idéias contrárias) o desjejum, arrumou o material e saiu com a mochila nas costas para o colégio. Nesse dia em específico, cinzento de nuvens-chumbo, havia um tom melancólico no ar. Talvez porque a chuva é sempre triste na cidade. Mas fez pouco caso e partiu. Na certa iria chover! Mas não quis se dar ao trabalho de voltar e procurar o guarda-chuva, que, aliás, era um utensílio que pouco usava. Fechou a porta e saiu.

Seguiu pela avenida. A escola em que estudava ficava a duas quadras de sua casa. Havia algo de estranho no ar. Além das nuvens cinza, a cidade estava vazia. Parou no sinal. Em meio aquele ar sombrio, uma doce melodia de pássaros atingiu-lhe o corpo. De repente um calor. Havia uma luz sobre sua cabeça. Era estranho porque parecia que ninguém mais enxergava aquela luz. Só ele a via. O sinal abriu e ele continuou andando. Foi de repente que sentiu gotas de papel caindo sobre sua cabeça. Eram palavras que desciam do sol. Muitas, milhares... como uma bomba atômica, uma força simbólica grande. E elas foram descendo: Amor, ódio, coragem, tristeza, fome, política, caráter, ética, bondade, covarde, catástrofe, religião, sexo, culpa, sobriedade, infeliz, feliz, sucesso, profissão, e a última que depois de muitas horas caindo, tropeçou-lhe nos lábios jovem que a proferiu em voz alta: POETA. E um devaneio de cores e imagens tomou-lhe o instante em que deu som à palavra.

Ele sabia sem saber explicar que falava a língua dos passarinhos, das formigas, das lesmas, dos homens, de toda a natureza. Sabia também que sentiria mais que os outros. A palavra POETA haveria de fazê-lo um homem diferente, lá onde vive o abstrato, o subjetivo, o metafórico, o enigma. Lá onde as respostas buscam respostas. Seguiu para a escola atordoado de ser mais um escolhido. Já em sala sentou na última cadeira. Debruçou a cabeça sobre os braços e adormeceu em seu sonho corriqueiro de dias azuis e de beleza infinita. Viu-se rolando em uma folha gigantesca de papel. Pensamento híbrido, solto na amplidão daquela página em branco que he soprava palavras esgarçadas, imagens sutis que traziam cores, criação pura. De volta a realidade, tudo parecia disforme. Os acontecimentos daquele dia tinham sido demais. Seu corpo tremia, sua alma rangia. Um misto de pânico e prazer retinha-lhe a mente. Atordoado, levantou da cadeira e foi cheirar a manhã. Era melhor do que a frieza das palavras do dicionário. Tudo vertigem. Deitou na relva a espantar as nuvens pra dentro de si e ali, pela primeira vez, sonhou acordado.

Atordoado de coisas começou a se sentir diferente. Era outro. Enxergava enviesado o movimento dos pássaros, o som retumbante da natureza, a atitude dos outros, tudo enfim. Sua mente satélite agora capta o invisível, o não dito, o sentido dos objetos, o incompreensível, o metafórico. Agora ele esconde o real entre palavras. Faz parte do lado humano do ser. Virou poeta.


Marcos Vidal

segunda-feira, 22 de março de 2010

A moça do mar


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Os olhos demoram a abrir. A madrugada tinge de luz os passantes. Ele cansado empurra a cadeira e sai. O som alto do boteco impede-o de ouvir os comentários que se seguem à sua saída, não liga. Acende um cigarro. Atravessa a rua lentamente. Estica o braço para um táxi que se aproxima. Faz frio. Ele foge das pessoas. O táxi chega ao destino. Ele paga a corrida e se aproxima da casa dela. Tira o tênis e corre desesperado areia adentro. Molha os pés e deita. A solidão esfria a noite. A doença da alma atesta uma chuva sem pingos. O frio esmaga a imaginação vedada de luzes negras. Ele põe-se a olhar para o mar. Todos os dias ele aprecia a superfície em busca do olhar carinhoso de sua amada. Contudo, sem ela, os dias ficam mais sem graça, sem gosto nos olhos, sem pintura nos dentes. Quando o sol se põe, o olhar solitário dele busca na luz da lua as impressões desse amor platônico, contemplação eterna que a noite proporciona. A lua deserta e a ilusão atormentada inundam-o. As estrelas escondem-se sob o luar. Durante dias e dias ele beira à praia. A sua ansiedade em torno do canto dela resseca a pele. As lendas enaltecem a alma dos curiosos, os céticos alimentam suposições. Armadilhas vão sendo montadas sem manual. Ele experimenta a neblina da maresia e se embriaga de algas, sufoca os olhos de verde marinho. Suas lagrimas ajudam a salgar o mar. Ele diz que o pacto é de lágrimas, sem sangue, sem esperança. Acredita na moça do mar. Ela, por sua vez, sabendo de tal fato, brinca com ele de saudade. Tem dias que não aparece, finge felicidade de espumas brancas.
Começou com um não. Aquela paixão havia nascido da impossibilidade, como toda paixão deve ser. Saiu acabrunhado, sem destino. Uma vodka acompanhava-o em sua investida negativa pelo término da solidão. Perambulou feito mendigo até encontrar o mar e a sua musa cor da madrugada. O horário dela meia noite, onde a antemanhã faz dos sonhos reais uma ilusão. A pele dela escamada, esbanja brilhos de sol. Pele de espelhos, frescor das manhãs, neblina de maresia, fragmentos abissais em brincos de pérolas. A música que ela canta vibra o coração dele. Ele grita: "Sereia, seremos nós?" Ela nada diz a não ser um sim em descolorido tom de canção. Ele abre o champanhe ofertado a ela por algum devoto do candomblé. Em seguida o cansaço lhe toma, mas ele segue firme madrugada adentro, olhos esbugalhados, petrificados de desejo.
O dia amanhece e ele sem direção. Um resto de discernimento sufocado pela luz ainda ressoa atroz. Ele precisa dormir. Consegue em uma farmácia um sonífero forte. Já em casa procura o chuveiro. Lava seu corpo de areia fina da madrugada. O dia precisa morrer. “Eu desejo que sempre seja madrugada. Quero ter forças para morrer da impossibilidade desse amor. Quero nunca mais ter passado, nem neblina arrogante em meus olhos”. A sua mentira formata uma visão de acordo com a desigualdade do presente. As coisas nunca saem conforme o combinado. A sua natureza recria o devaneio constante desse amor impossível. Aumenta a loucura ao som das gaivotas. A neblina insiste, sonha a realidade nua tom disforme de insegurança, adentra a possibilidade de tornar verdade esse amor, trancafiado em pele de mar e água que não se bebe. Ele desatina ardente sem sol. Destino de tolo.
A sua casa está mexida, revirada, sem forma, danificada de certezas que nunca chegam. O que deseja é ser amante dela. Poderia marcar o dia que quisesse. A hora, a trilha sonora do primeiro beijo. Ela está no comando. Buscou o espelho e se perdeu. Não se via. Não se reconhecia. Vendeu sua alma por aquela crença, mas crer consumiu-lhe o ser. Uma boa parte de seu passado havia se esvaído, se diluído à beira mar.
Deitou pensativo. Conseguiu relaxar e dormiu. Seis da tarde. O tempo lá fora é o mesmo quadro da noite passada. Neblina sem álcool, átomos de lágrimas... Apanha uma maçã, troca de roupa e sai à procura de sua amada. Ela costuma demorar. Põe-se com destreza a construir à beira mar um castelo de sonhos, de cômodos largos e cores silvestres. A primeira noite passa. A segunda, a terceira... Na décima quinta noite ela aparece. Ele a olha sem reconhecê-la. Ele diz: "Você mudou. Algo mudou em você, não sei... Construí e reconstruí esse castelo de areia pra nós morarmos. Sonhei, mas você mudou... Eu até gostaria de saber por quê?" Ela nada diz. Ele já não tem mais forças. Só os seus olhos agora dizem. A sua volta, vários outros corpos dilacerados de amor como o seu. Ele pergunta pra ela: "Há um lugar específico para quem morre de amor? Quem são estes que padecem ao meu lado?". Ele não houve mais nada, nem mesmo a canção que era cantada por ela todos as noites quando chegava.
Pela primeira vez ela saiu do mar em busca dele. Nua, de cabelos escorridos, beleza endêmica, angelical. Toma-o nos braços e entra no mar. Ele, embriagado do cansaço da morte não percebeu que ela veio buscá-lo em seu sonho.


Marcos Vidal

sexta-feira, 19 de março de 2010

Queda Livre


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Queda Livre

Começou a cair de braços abertos. Mundo dos olhos. Bisturi no tempo. Seria a soma das coisas o resultado de tudo? Recomeçaria agora se fosse possível. Salta pra fora das coisas do sentimento. Emoldura a tristeza pintada a óleo. Um amarrado de coisas, emboladas, enviesadas. A queda é livre, ligeira. Um zunido nos ouvidos, ventos em dó, elevação da alma. De repente uma forte dor nas costas e sentiu que asas brancas brotavam no sul de seu corpo. Dirigiu a liberdade bem próxima da tal felicidade. Haveria receios de enfrentar o mundo sozinho? Ele, estilhaçado de tudo, jogou-se. Ondas de dores massageavam seus ouvidos em comunhão com Bach. Um deslize de alma. A fraqueza foi fazer do outro a sua maior falta. Seu corpo ao vento enxergava tudo além, mas sentia tudo aquém. O azul subiu-lhe à cabeça. Estrelado de dúvidas contemplou a lua. Ela sempre marca o tempo da renovação, mas muitas vezes minguante de lágrimas. O tempo não conseguiu salva-lo. E aquele corpo cairia arrependido de viver, oco por dentro.

4/10/2006.



Pelo canto dos meus olhos



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As coisas
Num azul intenso
Passeiam por meus olhos.
Roupas no varal
Poeiras do instante.
Da carne o prepúcio escorre
Onde alma lambe vento
Leve, vazia, claridade fria...
Pelo canto dos meus olhos
Esmago imagens.
Escorre pelas mãos
o embrião das coisas.
Pelo canto dos meus olhos
Parte um trem.
Caruaru – 2000
Marcos Vidal

Mixórdia


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Corro a galopes raios azuis.
Sementes de girassol
borboletam no céu.
Esquivo-me de ser pedra.
Monóxido de palavras
dilui cérebros.
Haverão dias horizontais?
A tradição tem cor rupestre.
Meu corpo celeste, azeite amarelo
tocaia no ventre uma luz vaginal.
Emperrei a condição de te olhar.
À beira dos teus lábios enxergo
nãos...
Há tempos não descubro meu sangue.
Minha pele escura escorre martelos,
espinhos de ferro rasgam-me os olhos.
O cinza da madrugada sem par trouxe você.
Gelos boiam no uísque.
Teu olhar embotado
briga assustadoramente comigo.
A noite cala lembranças.
Recupero o amor
reconstituindo,
reeditando.
Mixórdia sertanista
doente inacessível de mim mesmo.
Marcos Vidal