quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Pessoano



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Não...
Não faço da dor
um nada reticente
uma flor sem cheiro, ardente...
Finjo
eu sei
a pessoa do Pessoa
em mais de três
Mas, da dor que minto
Eu cá, já não sei.

Marcos Vidal
18/02/09

sexta-feira, 11 de setembro de 2009



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Durante dias
um vão de mim
corre a envelhecer
nozes no caminho.
Sem vida
cismo verde,
lua inchada
barro de estrada
solidão hereditária.
Tonto de mar
a criança em mim,
sem pão, põe-se a pescar
rala as mãozinhas
na areia enquanto canta.
Então, liberto nuvens
enquanto me tranco em azul.

Tu Juras?



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Tu juras perceber
meu corpo feito de vida?
Tu que insistes em abominá-lo
como se fora de madeira ou ferro.
O que fazes com minha epiderme
dói em minh’alma.
Tu juras lamber o vento
feito anjo em mel, intento?
Tu juras me olhar de frente
sem frescura de olhos ardentes
soltos na neblina com passos de bailarina?
Tu juras me ouvir em silêncio
e acreditar na minha fantasia,
que hora finges alegria,
hora se esvai em noite fria?
Tu juras dizer somente mentiras
para que eu invente as minhas verdades?
Tu juras roubar minha sombra
para passear com ela à beira mar,
encadeado de volúpia espumante?
Eu que me rechaço em tua ausência
para me desconhecer de ti.
Eu que finjo raiva porque não sei demonstrar amor.
Eu que navego a dor dos outros.
Eu que achei que iria mudar o mundo
quando comecei a ler.
Tu juras não acreditar em mim?

Vertigem





A sobriedade
me entorpece...
no entanto, uma voz
surge em tapete carmim,
etérea a engrandecer
os meus eus.
Trancafiado em mim
eternizo passarinhos.
Em meu abissal
cavalos-marinhos circulam azul.
A noite dança faceira
com seus brincos de estrelas
a gozar enfim.
A minha vertigem
não tem pressuposto
antes o meu desgosto
a sofrer tanto assim.
Mas eu rotulo o vento
esmago o meu pensamento
e desaguo semelhante
ao meu lixo ambulante
chamado desencanto
que atrás do pensamento
trouxe você no fim.

Heráclito



Para meu avô, Antônio Vidal.


O sol ainda nem cercou o azul da madrugada e lá está meu avô a espreitar o sabiá. O pássaro que atende pela alcunha de Heráclito sinalizou em algum momento que iria partir. Meu avô acordara mais cedo que de costume para ouvir pala última vez o canto de seu amigo. Passou o café enquanto Mariinha dormia. Pôs-se a lembrar das manhãs ensolaradas que meditava sobre o canto de Heráclito. Vovô acordou decidido, iria abrir-lhe a porta para a liberdade, a clareza para o infinito. O canto de Heráclito era o evangelho de vovô. Sobre ele a verdade se fazia, podia se ver por dentro, o dentro do mundo, as especificidades dos instantes que geram acontecimentos provocados pelo desejo, e dor da velhice. Aquele canto, mais forte que qualquer sereia, insuflava-o sobre um dos pensamentos do filósofo de mesmo nome. O sabiá entoava em seu cantar, a melodia do fragmento do filósofo grego que deu nome ao pássaro: procurei-me a mim mesmo. Aquele canto, segundo meu avô era um mantra que o obrigava a refletir sobre si mesmo como dizia o filósofo. Havia aprendido a se conhecer a partir do trinar de Heráclito.
Meu avô ganhou o pássaro de um senhor amigo seu que vendia pedras preciosas. O velho dizia que o pássaro o ajudaria a entender-se melhor, nesta idade, disse o velho, só nos resta a certeza da morte, mas não precisamos nos intimidar quando ela chegar. Ao cabo e ao fim, disse-lhe o velho, é preciso entender o adeus. Vovô vivia dizendo que estava chegando a sua hora, e que preferia, numa atitude, que sabia ser egoísta, ir primeiro que Mariinha, não agüentaria o peso da saudade. Vovô, até aquele momento não havia aprendido a dizer adeus. Mas Heráclito dava-lhe segurança e lhe ensinou a erguer a cabeça. Meu avô dizia coisas que aprendera com Heráclito. Num desses dias em que o sabiá cantava, fez-me uma declaração, disse-me vovô, eu não sou de assumir meus erros, mas pra você posso dizer que fui um ser invejoso. Isso só aconteceu quando comecei a envelhecer, queria ser jovem para sempre. Como invejo a juventude.
Quando chegava à casa de vovô queria logo detalhes sobre o que fizera, buscava sinais em meus olhos para descobrir segredos meus. Nunca dei importância. Mas no dia em que abriu a gaiola de Heráclito para que ele enxergasse a liberdade antes de morrer, meu avô parecia outra pessoa. Era como se ele tivesse entendido que todos temos um tempo definitivo, apesar de não sabermos a data de nossa morte. Dizia que agora podia caminhar sem seu companheiro de filosofia, afinal, ele havia conhecido a si mesmo através do canto do pássaro. A liberdade de Heráclito também era a sua. Deixa-lo partir era sinal de clareza da vida. Havia compreendido a inocência de achar que ser outro pudesse amenizar a sua solidão de velho. Não era muito de falar com vovó, sempre monossilábico com o mundo. Mas comigo era diferente. Sempre citava Heráclito. Pensar sensatamente (é) virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo (a) natureza, escutando. É claro que eu não entendia nada, mas adorava ouvir, os olhos de vovô brilhavam como a minha bola-de-gude. A sua certeza me inibia de conjecturas, coisas que me arrependo.
Pôs-se a caminhar em passos lentos para Heráclito. Sentia o gosto da liberdade junto ao pássaro. Tomou a gaiola em suas mãos, aproximou o rosto ao corpinho de seu amigo e disse: Caro amigo, sei que já bate em tua porta o destino teu de pássaro. Ouço o teu coração cansado, e os olhos teus já me dizem adeus. Devo a ti a minha clareza diante da vida, a revelação da minha fraqueza encostada a tu existência, a minha superação diante da morte. Pousou a gaiola sobre a mesa e com o indicador e polegar, abriu a portinhola e libertou Heráclito. Vovô achou que pelo tempo de convivência Heráclito fosse ficar por perto, mas eis que balançou a cabecinha, olhou para o Vovô e voou em direção ao sul, como se fosse sempre o seu destino, e desapareceu com o raiar do sol. O vermelho do céu refletidos nos olhos de vovô dizia tanta coisa, mas, eu havia conseguido ler a tempo a palavra saudade em letras maiúsculas transpassando de um olho ao outro, na horizontal.
Marcos Vidal

Vinho Intrépido



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Em meio a tantos por quês desarrumo-me entre cores e sobreponho a minha ignorância num sentir fundo as animosidades do presente que pressente a cegueira dos meus maus hábitos. Eu persigo o desconforto no caminho das ruas estreitas nivelado pelo ego estonteante. Não devo mais perguntar por quê? Perco-me na escuridão inusitada da paixão que transcende a moralidade que ainda mora em mim. Do meu avesso escorre o sangue da morte que tudo finda, qualquer possibilidade existente. Mas eu consigo alimentar a vida sem qualquer certeza, razão esta de uma única confiança, uma felicidade angustiante de poder me exaurir em qualquer faz-de-conta que eternize minhas reticências. Não, eu não sei o gosto das ocorrências, eu finjo a minha existência em coisas pequenas, estúpidas e antioxidante que atrapalham as minhas respostas em relação à vida. Sigo trancado num corpo que não corresponde à dor da minha alma. A tônica de o meu sofrer não resiste às palavras transversais, pois não explicam a tormenta da exatidão perfeita de minha anuviada percepção. Invento sim... sempre fui de inventar, de faz-de-conta, mas sei o limite das coisas. Não renego nunca os acontecimentos reais que me cercam, posso não exagerar as suas possibilidades porque não me regozijo com pouco. O sofrer sim, essa migalha transcende os segundos e devolve-me ao lugar dos loucos sem razão ou parâmetro. Não, eu não finjo mais do que umas poucas palavras esgarçadas na contra-mão do caminho que não vejo. Senso-comum. Que sei eu de senso-comum? Eu que nunca sigo fluxos nem irmandades, eu que me clareio com a lua e me transfiguro na pequena luz das estrelas por serem muitas e miúdas. Eu prefiro o brilho mínimo das coisas à vista, a enxergar a realidade sem efeito nenhum. Quem dera pudesse viver de perfil sem mostrar-me por inteiro, mas os meus olhos se entregam aos vasos sanguíneos que escorrem sangue em vez de lágrimas. Choro sangue porque quem chora não sou eu e sim minha alma. O meu corpo não, o meu corpo é iconoclasta, frio e sem pudor. Quando me aproximo não sei ser, a minha natureza afasta os seres que não enxergam a flor azul. E por que não a vermelha, a mais comum? Porque a azul só brota nas margens, na escuridão das coisas, como se furtar a dor fosse pecado. Eu não, só depois de muito tempo que fui cheirar as margaridas, não para verificar se elas possuíam cheiro, mas para sentir-lhes a vida, pois não gosto de flores porque possuem perfumes, gosto de flores pela sua jactância, pois elas são sem anunciar nada pra ninguém. Temos manias de nos vender como se fossemos paradigmas para alguma coisa. Eu não, eu não sou de rótulos, nomes, nuvens, ou algemas que escorram mãos abaixo para prender a ignorância dos outros. Eu não, eu sou da vida, da liberdade, tenho corpo, mas sou todo etéreo, azul de cada vez. Em vez de sangue, seiva. Eu renego meu todo em troca de um corpo que acompanhe o trâmite das coisas. Eu, narciso de esquinas não fujo pro bar a substituir o meu outro eu porque sei que ele vai passar. Eu encaro a dor em sua verticalidade, apesar de que quando deito o horizonte traz-me lágrimas. Mas eu não floreio no verão, seguro a minha única flor até o outono de mim, estação entre... eu nunca estive nas extremidades, nunca fui central, grau zero. Eu sou tão fugaz que mais um pouco vocês não me vêem, pois eu não vim aqui me apresentar pra ninguém, erradicar o que não é meu. Eu fujo as impropriedades antes mesmo que o mundo dite regras, eu que sempre fugi a todas, sigo as leis dos homens porque sou educado e resplandeço a imaginação de sombras que não vemos, pois a sombra sim, é o nosso eu ao avesso, e ela está ali sempre a nos lembrar que não somos solares. Mas basta um amor, e o céu se modifica. Passamos a contar luas, ondas dos mares, tudo menos o tempo da felicidade, pois este lembra-nos o eterno, visto que o tempo não se conta, ele é, não queremos admitir, mas o tempo não é esse que se apresenta, ele é outro sem forma, bem menos imaginário do que este que os homens inventaram. Eu não conto o real pra mim mesmo. Eu finjo. No meu fingir é que me encontro. Não estou em tudo porque não me deixo ser. Mas há um anjo que me escuta e me compreende, só ele. Ele não é a minha sombra porque não o vejo, mas ele está sempre comigo. Queria poder resgatar todos os seres em mim, mas o meu corpo é pequeno demais. Além do meu corpo, onde moram palavras eternizo-me. Vou passar? Terei sido? Um grão. Sim, me dirão os meus além mar. Eu não possuo certeza nenhuma quando imagino a felicidade na palma de minha mão, como fazem os crentes, porque eu não acredito no tempo, a minha implacidez não fulgura no ventre alheio, ela é só minha. O tempo nada me diz, só quando fujo de mim entre as histórias é que me sinto vivo como os outros. Eu não conto as horas em busca de salientar a minha estupidez, eu descambo na flacidez das nuvens e busco o meu tempo, a minha sina de estar correndo sem saber pra onde. Cadê a luz no fim do túnel? Arre, por que os outros não se perdem como eu? Será por que não sabem a química das grandes razões das leis que não são dos homens, mas minha? O meu desejo descumpre regras... e sigo gostando de quem não gosta de mim. Silêncio. Acordo. A água desnuda as pedras em suas paragens sem brilho. Não, não e não. Eu não vou me diluir pra servir de tempo pra ninguém. Pois o meu mundo nunca vai ser o mundo do meu vizinho, o meu mundo não tem moedas, eu não sou de trocas. A minha necessidade não é de ninguém e o que eu possuo não será só meu, há uma certeza em mim de que não penso sozinho tudo que penso e sinto. Ou então sou só eu que medito tristeza?
Foi numa noite madrigal que pus tudo a perder, e me vi exilado por uma ação incompleta e imperfeita, de mais uma tentativa de construir sonhos reais... antes um poema, uma utopia. Foi de repente que aparecei no prumo do vento a recontar manhãs semiconscientes, antes mesmo de acordar daquela letargia ludibriante que esvaziava a minha razão. Cego de tudo, mas cheio de palavras e poemas de instantes, acabei por seguir no trilho circular do labirinto de mim mesmo. A minha razão gritava, mas o meu corpo não atendia. Eriçado, desviei a minha lógica para o vão do que não cheguei a ser. Hoje, guardo apenas o rufar do coração num canto trêmulo de uma canção sem fim. Dói a tortura do destino! E pergunto ao Divino por que as coisas têm de ser assim, apoteose de um só instante. Mas me foi possível revelar as fotos e guardá-las no vôo dos pássaros o meu presente. Hoje, quando olho pro céu e vejo um rasante de penas logo respiro. Sinto-me invadido por um estupor que paralisa a minha morte súbita para em seguida permitir que eu continue a andar com o gosto triste da saudade nos lábios.
O nunca vive a me perseguir, caminho sem saída, mas a minha luz desmente toda essa estranheza que insiste em nublar meus pensamentos com tons mais escuros. A minha dor moral é menor que minha dor de cabeça, ou antes, uma obsessão pela verdade. Mas o que é a verdade senão o que invento para satisfazer o meu ego.
Querer enxergar o que ninguém vê me enlouqueceu de poesia.
Trancado nas redondilhas exagero cores, estúpido modo de ouvir a alma. Mas de que adianta tanta sobriedade se não sigo o quê escrevo? E também, por que deveria, se todas as minhas mortes não concentram a minha vida? Em breve serei apenas um eco de minhas emoções acidentais num futuro sem curvas. Uma reta e despenco rígido dentro da realidade sem sintomas lunares de momentos idênticos. A predestinação não me fascina, mas quero entender sempre os porquês. Ensaio respostas ante um cigarro. Deformo a realidade com base no meu desejo. Eu que desejo tantas coisas acabo por me perder nas encruzilhadas da vida sem saber administrar essa rede de situações em branco e preto, sem detalhes que me façam desobstruir o volume de sonhos que não andam em velocidade igual. Penso se o meu querer tem a mesma velocidade da luz, ou seja: penso, logo desejo. Acho que não. No entanto, deixo as coisas pequenas crescerem numa impaciência disforme, análogo a minha alegria. Sim, porque quando acordo e sou tomado pela loucura do querer, invento um sol entre nuvens e os sons elevam-me aos céus num prazer absurdo, inigualável ao que homens chamam felicidade. Eu sou de cores sim, mas de que adianta se minhas palavras são daltônicas? Talvez prefira o espírito da impaciência, da voracidade menina de arrebatar manhãs em torno das amendoeiras, isso sem falar no mar e nos mistérios embotados em sua significância. Entretanto, me disfarço bem de mim mesmo.

Marcos Vidal
21/03/2009.

Algumas cartas sobre o futuro



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Deixei cair sobre a mesa algumas cartas. Havia rosto nelas, sorriam duplicadas, serenas, conforme o andamento do pensamento sobre a representatividade dessas figuras a sorrirem pra mim. Uma voz provinda do meu eu difundia esse som em andamentos quatro por quatro, acelerando fantasias sobre as cartas. Gesticulavam vozes polifônicas, sopravam-me o futuro. Na certa tudo falso... já me acostumara às janelas na contra-mão, sintonia de pássaros a voar uma rota onde o líder delineia o percurso honesto de acordo com as suas necessidades.
Aquele futuro em meus ouvidos sempre com a mesma maestria, uma natureza morta, a solidão dessa espécie única que sobrevoa a imensidão do amanhã que é o homem. Alguma coisa atribuiu a essa natureza uma força descomunal inferior ao não acreditar. Eu sabia dessa certeza veloz de apontar as desgraças, o estabelecimento das coisas. Ao contrário de mim esse futuro era homogêneo de sentidos a brincarem no jardim da inconsciência. Mas o olfato prendia-me ao presente daqueles olhos de ondas mornas de situações incompletas. Havia um outro amor. Eu ficaria sozinho com a minha paixão, fragmentado em não ser nada, andarilho. As cartas diziam isto.
Eu tive raiva daquele futuro, ignorei-o por dias até que ele se tornou presente. Arrastei-me solitário, diferente, sem saber como explicar para mim mesmo o que era aquilo. Palavras não havia, só essas que agora escrevo. Naquele dia sem palavras pequenas imagens símbolos emprestados em minha memória sangrenta e vazia culminavam-me.
O celular toca de novo, uma vez mais. Eu fingi não escutar... As imagens falam, ou melhor, gritam: Sou o futuro agora presente. Mudo. Esvaziei-me todo. Boiava na superfície. Ignorando o começo de tudo estranhei o meu constrangimento diante de minhas palavras em fazer (re)nascer aquele momento. Guardei-me em segredo. Fingi que nada acontecia. Foi pior, escureceu, trovejou, choveu. Estava acuado. Estranho. Diferente. Estava acontecendo o que eu previra. Traição. Era verdade. Com frieza profissional de quem nada sente comecei a beber, espargir momentos sobre minha memória. O que me restava então? Adormecer sobre os sonhos? Atraí-los de má fé? Prendê-los sobre o consciente e rir da cara deles? Imbecil. Pra que acompanhar a lua a crescer se ela não vê a estratégia que fundamentas? Eu mesmo não percebi. Nunca consegui filtrar sonhos. Eles sempre vazam sobre a minha paz nevoenta. Aparência. Sobre o cenário? Não havia cenário, era tudo vazio como o meu agora. Traição. De novo sozinho. Adormecido sobre os braços. Câimbra. Acordava de mim ranzinza, esfomeado de vida. Levitei naquela manhã do futuro. Havia queimado energia sem saber que mais tarde precisaria dela... Encontrava-me vazio. Mas aconteceu como deveria. Sendo que mais uma vez achei que saberia agüentar a pressão do meu eu gritando palavrões como “idiota, escroto, velho, ninguém... Quem se importa? Você é sozinho mesmo e sempre será”. Meu corpo tremia, pulsava raiva sem perceber. Odiava respirar. A morte? Estradas longas árvores e matos lua e estrelas. Som? Nenhum. Ou melhor, sim, o do meu inconsciente. Puta que o pariu como doía estar diante de mim. Vi-me pequeno segredando poemas ao vento. Tolos pensamentos. Cigarros espalhados sobre a mesa. Eu a fingir que gozava surdo de palavras mortas. Devorei-as em séries, dei-me este direito embora a garganta pedisse mel. Indolente. Inferno aceso. O futuro hipócrita sem caráter. Fui eu o responsável por isso? Pensava. Eu que nunca fizera questão de me manter isolado agora era um ser sozinho a enfrentar de cabeça erguida àquele que tinha sido o meu mais puro alerta. Contramão. Os cigarros continuam sobre a mesa. Fumo-os desesperadamente. Sou um engano? Toda ilusão é uma liberdade acuada, sem brios. O presente quando grita ninguém mais enxerga, afundamos com ele. Traição. Era só o que pensava. Querem um cenário? Dar-lhe-eis. O nosso amor era uma casa fechada, e nós não sabíamos quem morava lá. Ela ficava num caminho sem direção. Existia uma ponte, um vento forte, uma mão que espalhava prazer, um isto de comum acordo com aquilo. O dia nascia de assombros. Sonhos dantescos. Como que alguém desgosta de alguém? Meu corpo sem energia escorrega pelo dia. A minha presença não vale de nada. Velho e sozinho. Eu que havia projetado esse futuro? Agora penso no que fora bom, o presente exigente sem sentidos: guarda-chuva. Talvez pudesse ser melhor. A mentira quando se acostuma se sobrepõe. Eu pelo menos não mentia para mim mesmo. Não me enganava. Ou será que mentia? Claro que mentia. Sempre menti para mim. Hoje sou falso, uma alusão a alguma coisa que não chegou a ser. Separação. Devíamos pular o futuro que já prevíramos no passado? Pra que tudo isso? É ser leão? Líder? Quem segue a fila? O presente se detém nas coisas mínimas. Sopro com força o meu aquilo e vejo estatelarem-se sobrancelhas num rosto sem olhos, esmagados pela dor de estar in loco. Labirinto em contra-mão. O celular toca de novo. Silêncio. Não sei reproduzir palavras que não conheci, que não ouvi. Fico em silêncio minutos que me parecem uma eternidade. Desço para comprar cigarros. No bar encontro uma puta. Pergunto se fuma. Sim, ela responde. Lambe meus dedos atrelados ao cigarro. Puxo-lhe os cabelos e passo a língua em seus olhos. Ela me diz “Babaca”. Xingo-a de puta. Ponho a mão dela em meu pau. Ela diz: “Hoje não, traído!”. Taco-lhe a mão na cara. Piranha. Arrasto-a pela rua arranco-lhe a blusa, chupo-lhe os peitos, enfio os meus dedos em sua buceta, cuspo-lhe na cara e vou embora.
No apartamento a minha mulher continua ao celular. Piranha. Arrebento o telefone na parede. “Sua vadia, você não pode ser o meu futuro. Você não merece nem um segundo da minha mente”. Fecho o livro. Não consigo mais ler. Queria dizer tanta coisa naquela noite. Chegamos separados. Já havia uma semana que não nos víamos. Da última vez nos embriagamos, foi bom. Estava estabelecido, seria aquela a última vez. Gozei muitas vezes. Pretendia um filho. Quando acordei havia partido. Vagabunda. Era outro. Traição. Puta. Abri a janela num recomeço ao dia. Li no jornal que o Brasil e a Argentina se desentenderam mais uma vez. Puta que o pariu até na política.
Chegara uma frente fria naquela manhã do futuro. Eu achei que seria demais pensar a palavra não. Havia esquecido as cartas. Mas elas insistiam com os seus sorrisos escrotos. Havia queimado energia demais. Fiquei fraco, não entendia como me defender. Culpa do cigarro? Aquela puta. Era de família direita. Crescemos juntos. Eu e ela. Já nova dizia que iria casar comigo. Nunca acreditei. Moramos juntos quatro anos. Ela nunca foi de falar. Completava as minhas nuvens em criança era tudo o que eu quisesse. Cansou. Deu pro primeiro depois da nossa separação. Piranha. Era assim.
O som alto abafou o celular, não ouvi mais nada, fiquei surdo. Quebrei o celular na parede. Ela não dizia nada. Acostumara-se aos meus devaneios. Tomei um táxi para Madureira bairro da zona norte carioca. Ali sobrevivi àquela noite. Dei-lhe um soco na cara. Seguraram-me a tempo, ia matá-la. Sentei numa barraquinha, acendi um cigarro, pedi uma cerveja e ali falei o que queria pra mim mesmo. Sozinho, comecei a falar, todos olhavam, “esse é maluco”. Pus a reparar em mim, no que havia lido nas cartas, o meu futuro. Era isso... O meu futuro queria ir mais adiante, alargava-se de mim como se as coisas pudessem simplesmente ser por elas próprias. Detesto surpresas que não estão no escript. Em Madureira o meu desespero era percebido no rosto das pessoas, seguiam-me pelos trilhos dos trens. Uma enorme imensidão me acometeu, detesto mentiras, ela havia mentido para mim. Uma máscara sem olhos... As palavras que a minha mente havia me dito com as cartas agora faziam sentido em minha cabeça, então comecei a fingir, mas as cartas me vinham à mente, riam de mim. A crueldade do destino emborca saliva. Uma boca sem dentes alisa a minha madrugada, “os peixes não vieram do mar” dizia uma voz ao longe, “estão congelados!!” e o frio tornando o meu corpo presente. A crueldade dela foi jogar enquanto eu estava inteiro na relação, se ao menos o nosso sexo fosse medíocre, mas era êxtase a sucumbir a estratosfera. As cores fugiam em bloco, sobravam apenas o branco com sua nitidez vulgar de pensar que podia mais que as outras cores. Sei que havia me descontrolado, mas foi o meu inconsciente que me transformou quando eu ainda dormia. Por falar sozinho fui criando coisas em minha cabeça, fantasias que dessem conta daquilo que havia preparado para mim mesmo. As cartas falavam de coisas que eu mesmo falava pra mim. Mas como isso é possível? Sempre falei sozinho. Sempre me senti só, infelizmente só a vagar sem direção pela estrada da dor. Meu corpo dorme sem aflição diante de tudo aquilo. A vida sem programação é um eterno ensaio pro não, pras dúvidas. Eu pensei que podia controlar o futuro mas ele escorregou sem dizer adeus.