terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Desenho rápido do meu eu





            Eu não sei ser o conjunto do que sou. Posso dizer sobre o presente, dessa angústia apavorante de estar em lugares que não desejaria estar e estou. Este pode ser um caminho de algumas certezas que começam depois dos quarenta. Certa impaciência que vai dando o tom em todos os níveis e o desejo de fazer apenas o que movimenta a nossa alma no mundo.
Eu sou aquele que sede o lugar, que dá bom dia e boa noite, que escuta o outro, que tem aprendido a dizer não, porque depois dos quarenta importa a felicidade do instante e a sua falsa realização.
Eu gosto do ínfimo, das coisas pequenas, de seres pequenos, dos que não aparecem na história. Eu sou hoje o que fui sendo ao longo dos anos. Um pouco de muitas coisas entre alegrias e desilusões. Um misto de tudo isso e uma boa dose de arte têm feito de mim o que sou hoje. Um pouco de honestidade surda que ninguém ouve e da tolerância cansada e já sem fôlego que ainda se aconchega em mim. 
Eu sou a ignorância e a sede de saber sempre.
Contudo, me dou conta de que essa solidão imposta de sermos apenas um único exemplar de nós mesmos para o mundo, sem cópia, faz de mim um eterno questionador das coisas boas do mundo, ou será que sou só eu que deseja um mundo melhor e diferente?
Este eu aqui das letras foi sendo para sermos nós e não apenas somente um eu. Nós não somos seres definidos, talvez palavras soltas ou fotos de perfil ou a roupa que vestimos ou a ilusão do que pensamos ser. Essa ilusão de que não passamos de seres fugazes, de uma foto revelada que vai amarelecendo aos poucos para depois apagar.
O Outro às vezes contribui nessa seara do conjunto do nosso eu. Muitas vezes de forma negativa, porque o outro não suporta a nossa grandeza, essa dádiva de sermos únicos, porque eles insistem em sermos nós, ou o eu de cada um de nós, e eu sou único. Embora não sinta solidão por isso. Mas o outro sente, e inveja o nosso sorriso.
Eu pensei que esse desejo do outro de quer sempre ser o eu de cada um de nós fosse pelo dinheiro, que é a mola mestra de tudo isso que aí está, mas percebi que essa doença de querer ser quem somos, é a estranheza de não se suportar ser o que se é no mundo. Então percebei que ser diante do mundo é ter que ser forte, porque por mais que vivamos em sociedade, somos seres solitariamente únicos.
A diversidade às vezes assusta, e quanto mais envelheço, mais perto fico dessa loucura de se sentir único no mundo.
Então, diante disso tudo, como responder o que sou? Sou o que consigo me revelar nesse instante, do que penso agora, porque amanhã poderei mudar de opinião, não de deixar de ser quem sou, mas de me permitir usar a minha máscara no meu carnaval da vida. Somos a relatividade de sons e cheiros, de lembranças que vai ganhando forma e estabelecendo nuances sobre essa nossa capacidade de fundir o externo e o interno numa formula única de poder produzir apenas o que somos diante da eternidade. 

Marcos Vidal

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um beijo-flor




Acordei desejando um beijo teu.
Mas como fazer se flor não sou?
Então reguei-me.
Pus-me a esperar pétalas nascerem
na ânsia de adornar meu rosto
em tom primaveril.
Desfiz dois cubos de açúcar como isca
e pus-me ao sol.
Tu chegavas mansa
entre asas, em segundos.

Apurei meu néctar e esperei
teu bico a inundar-me a boca de
sede e desejo.
Tu vinhas de olhos abertos
de vento leve
como em câmera lenta
entre mistérios e milagres...
E ao tocar-me
florei de ti
entre perfumes
e sombras.
Eu, rosa manhã de ti
e tu, beija-flor
do meu céu azul.

Marcos Vidal  

A menina da rua ao lado





Às onze horas ela passava:
saia plissada, meia três quartos,
broche azul e tudo combinava.
Aquele uniforme era nosso
Ela era a nossa garota de Ipanema.
O sol delirante da zona norte deixava
tudo ainda mais vertiginoso
Descia formosa, cabelos ao ombro
pernas torneadas e o sorriso
perverso de quem sabe
provocar corridas ao banheiro
para desanuviar o calor.

O tempo passou,
ela casou, filhos vieram
e quando a revi depois de anos
restava aquele sorriso provocador
de queimar o corpo quente de verão.

Transformou aquele sorriso
no propósito de sua vida
aquela alegria dos meninos
ainda pode ser vista nos olhos dela
em sua receita de alegria.

Desejo verossímil
do amor designado por Platão
hoje ela desfila na passarela da vida
e corremos pra ver a sua alegria
em frente ao portão.

Marcos Vidal