sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Heráclito



Para meu avô, Antônio Vidal.


O sol ainda nem cercou o azul da madrugada e lá está meu avô a espreitar o sabiá. O pássaro que atende pela alcunha de Heráclito sinalizou em algum momento que iria partir. Meu avô acordara mais cedo que de costume para ouvir pala última vez o canto de seu amigo. Passou o café enquanto Mariinha dormia. Pôs-se a lembrar das manhãs ensolaradas que meditava sobre o canto de Heráclito. Vovô acordou decidido, iria abrir-lhe a porta para a liberdade, a clareza para o infinito. O canto de Heráclito era o evangelho de vovô. Sobre ele a verdade se fazia, podia se ver por dentro, o dentro do mundo, as especificidades dos instantes que geram acontecimentos provocados pelo desejo, e dor da velhice. Aquele canto, mais forte que qualquer sereia, insuflava-o sobre um dos pensamentos do filósofo de mesmo nome. O sabiá entoava em seu cantar, a melodia do fragmento do filósofo grego que deu nome ao pássaro: procurei-me a mim mesmo. Aquele canto, segundo meu avô era um mantra que o obrigava a refletir sobre si mesmo como dizia o filósofo. Havia aprendido a se conhecer a partir do trinar de Heráclito.
Meu avô ganhou o pássaro de um senhor amigo seu que vendia pedras preciosas. O velho dizia que o pássaro o ajudaria a entender-se melhor, nesta idade, disse o velho, só nos resta a certeza da morte, mas não precisamos nos intimidar quando ela chegar. Ao cabo e ao fim, disse-lhe o velho, é preciso entender o adeus. Vovô vivia dizendo que estava chegando a sua hora, e que preferia, numa atitude, que sabia ser egoísta, ir primeiro que Mariinha, não agüentaria o peso da saudade. Vovô, até aquele momento não havia aprendido a dizer adeus. Mas Heráclito dava-lhe segurança e lhe ensinou a erguer a cabeça. Meu avô dizia coisas que aprendera com Heráclito. Num desses dias em que o sabiá cantava, fez-me uma declaração, disse-me vovô, eu não sou de assumir meus erros, mas pra você posso dizer que fui um ser invejoso. Isso só aconteceu quando comecei a envelhecer, queria ser jovem para sempre. Como invejo a juventude.
Quando chegava à casa de vovô queria logo detalhes sobre o que fizera, buscava sinais em meus olhos para descobrir segredos meus. Nunca dei importância. Mas no dia em que abriu a gaiola de Heráclito para que ele enxergasse a liberdade antes de morrer, meu avô parecia outra pessoa. Era como se ele tivesse entendido que todos temos um tempo definitivo, apesar de não sabermos a data de nossa morte. Dizia que agora podia caminhar sem seu companheiro de filosofia, afinal, ele havia conhecido a si mesmo através do canto do pássaro. A liberdade de Heráclito também era a sua. Deixa-lo partir era sinal de clareza da vida. Havia compreendido a inocência de achar que ser outro pudesse amenizar a sua solidão de velho. Não era muito de falar com vovó, sempre monossilábico com o mundo. Mas comigo era diferente. Sempre citava Heráclito. Pensar sensatamente (é) virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo (a) natureza, escutando. É claro que eu não entendia nada, mas adorava ouvir, os olhos de vovô brilhavam como a minha bola-de-gude. A sua certeza me inibia de conjecturas, coisas que me arrependo.
Pôs-se a caminhar em passos lentos para Heráclito. Sentia o gosto da liberdade junto ao pássaro. Tomou a gaiola em suas mãos, aproximou o rosto ao corpinho de seu amigo e disse: Caro amigo, sei que já bate em tua porta o destino teu de pássaro. Ouço o teu coração cansado, e os olhos teus já me dizem adeus. Devo a ti a minha clareza diante da vida, a revelação da minha fraqueza encostada a tu existência, a minha superação diante da morte. Pousou a gaiola sobre a mesa e com o indicador e polegar, abriu a portinhola e libertou Heráclito. Vovô achou que pelo tempo de convivência Heráclito fosse ficar por perto, mas eis que balançou a cabecinha, olhou para o Vovô e voou em direção ao sul, como se fosse sempre o seu destino, e desapareceu com o raiar do sol. O vermelho do céu refletidos nos olhos de vovô dizia tanta coisa, mas, eu havia conseguido ler a tempo a palavra saudade em letras maiúsculas transpassando de um olho ao outro, na horizontal.
Marcos Vidal

3 comentários:

  1. Maravilhoso, depois que comentou vim pessoalmente ler na integra, e adorei, me apaixonei!!!

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  2. Impressionante como consegui enxergar nossos avós nesse conto.
    Suas cadeirinhas ao pé do muro da Fábrica de Chumbo, sempre no horário da tarde quando eles lá sentavam para "levar um ventinho".
    O conto desenha a saudade, a infância, o amor.
    É simplesmente maravilhoso.

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