segunda-feira, 5 de abril de 2010

O engolidor de palavras



Para o jovem Rodolpho Fonseca.



Poesia é voar fora da asa.

Manoel de Barros



O relógio ainda nem despertou e lá esta ele a caçar palavras no dicionário a fim de responder as imagens do sonho que lhe acompanharam madruga adentro. A mente parece que seca com o sonho, diz ele. Sempre arruma desculpas para ir ao dicionário. Pela manhã foi o sonho. Mas no decorrer do dia, lá vinha àquela necessidade de encontrar palavras que pudessem ajudá-lo a entender o tempo de sua caminhada matinal de casa até o colégio. Era na verdade uma vontade de decodificar os acontecimentos do dia a dia. Uma mente poética nunca cessa de apreender coisas, principalmente quando existe a possibilidade de entender a si mesmo e o mundo a sua volta.

Após estabelecer em sua mente os signos necessários seguiu tranqüilo em sua rotina. Depois da leitura do dicionário passou ao banheiro. Tomou uma ducha (sempre fria para espantar as idéias contrárias) o desjejum, arrumou o material e saiu com a mochila nas costas para o colégio. Nesse dia em específico, cinzento de nuvens-chumbo, havia um tom melancólico no ar. Talvez porque a chuva é sempre triste na cidade. Mas fez pouco caso e partiu. Na certa iria chover! Mas não quis se dar ao trabalho de voltar e procurar o guarda-chuva, que, aliás, era um utensílio que pouco usava. Fechou a porta e saiu.

Seguiu pela avenida. A escola em que estudava ficava a duas quadras de sua casa. Havia algo de estranho no ar. Além das nuvens cinza, a cidade estava vazia. Parou no sinal. Em meio aquele ar sombrio, uma doce melodia de pássaros atingiu-lhe o corpo. De repente um calor. Havia uma luz sobre sua cabeça. Era estranho porque parecia que ninguém mais enxergava aquela luz. Só ele a via. O sinal abriu e ele continuou andando. Foi de repente que sentiu gotas de papel caindo sobre sua cabeça. Eram palavras que desciam do sol. Muitas, milhares... como uma bomba atômica, uma força simbólica grande. E elas foram descendo: Amor, ódio, coragem, tristeza, fome, política, caráter, ética, bondade, covarde, catástrofe, religião, sexo, culpa, sobriedade, infeliz, feliz, sucesso, profissão, e a última que depois de muitas horas caindo, tropeçou-lhe nos lábios jovem que a proferiu em voz alta: POETA. E um devaneio de cores e imagens tomou-lhe o instante em que deu som à palavra.

Ele sabia sem saber explicar que falava a língua dos passarinhos, das formigas, das lesmas, dos homens, de toda a natureza. Sabia também que sentiria mais que os outros. A palavra POETA haveria de fazê-lo um homem diferente, lá onde vive o abstrato, o subjetivo, o metafórico, o enigma. Lá onde as respostas buscam respostas. Seguiu para a escola atordoado de ser mais um escolhido. Já em sala sentou na última cadeira. Debruçou a cabeça sobre os braços e adormeceu em seu sonho corriqueiro de dias azuis e de beleza infinita. Viu-se rolando em uma folha gigantesca de papel. Pensamento híbrido, solto na amplidão daquela página em branco que he soprava palavras esgarçadas, imagens sutis que traziam cores, criação pura. De volta a realidade, tudo parecia disforme. Os acontecimentos daquele dia tinham sido demais. Seu corpo tremia, sua alma rangia. Um misto de pânico e prazer retinha-lhe a mente. Atordoado, levantou da cadeira e foi cheirar a manhã. Era melhor do que a frieza das palavras do dicionário. Tudo vertigem. Deitou na relva a espantar as nuvens pra dentro de si e ali, pela primeira vez, sonhou acordado.

Atordoado de coisas começou a se sentir diferente. Era outro. Enxergava enviesado o movimento dos pássaros, o som retumbante da natureza, a atitude dos outros, tudo enfim. Sua mente satélite agora capta o invisível, o não dito, o sentido dos objetos, o incompreensível, o metafórico. Agora ele esconde o real entre palavras. Faz parte do lado humano do ser. Virou poeta.


Marcos Vidal

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