segunda-feira, 22 de março de 2010

A moça do mar


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Os olhos demoram a abrir. A madrugada tinge de luz os passantes. Ele cansado empurra a cadeira e sai. O som alto do boteco impede-o de ouvir os comentários que se seguem à sua saída, não liga. Acende um cigarro. Atravessa a rua lentamente. Estica o braço para um táxi que se aproxima. Faz frio. Ele foge das pessoas. O táxi chega ao destino. Ele paga a corrida e se aproxima da casa dela. Tira o tênis e corre desesperado areia adentro. Molha os pés e deita. A solidão esfria a noite. A doença da alma atesta uma chuva sem pingos. O frio esmaga a imaginação vedada de luzes negras. Ele põe-se a olhar para o mar. Todos os dias ele aprecia a superfície em busca do olhar carinhoso de sua amada. Contudo, sem ela, os dias ficam mais sem graça, sem gosto nos olhos, sem pintura nos dentes. Quando o sol se põe, o olhar solitário dele busca na luz da lua as impressões desse amor platônico, contemplação eterna que a noite proporciona. A lua deserta e a ilusão atormentada inundam-o. As estrelas escondem-se sob o luar. Durante dias e dias ele beira à praia. A sua ansiedade em torno do canto dela resseca a pele. As lendas enaltecem a alma dos curiosos, os céticos alimentam suposições. Armadilhas vão sendo montadas sem manual. Ele experimenta a neblina da maresia e se embriaga de algas, sufoca os olhos de verde marinho. Suas lagrimas ajudam a salgar o mar. Ele diz que o pacto é de lágrimas, sem sangue, sem esperança. Acredita na moça do mar. Ela, por sua vez, sabendo de tal fato, brinca com ele de saudade. Tem dias que não aparece, finge felicidade de espumas brancas.
Começou com um não. Aquela paixão havia nascido da impossibilidade, como toda paixão deve ser. Saiu acabrunhado, sem destino. Uma vodka acompanhava-o em sua investida negativa pelo término da solidão. Perambulou feito mendigo até encontrar o mar e a sua musa cor da madrugada. O horário dela meia noite, onde a antemanhã faz dos sonhos reais uma ilusão. A pele dela escamada, esbanja brilhos de sol. Pele de espelhos, frescor das manhãs, neblina de maresia, fragmentos abissais em brincos de pérolas. A música que ela canta vibra o coração dele. Ele grita: "Sereia, seremos nós?" Ela nada diz a não ser um sim em descolorido tom de canção. Ele abre o champanhe ofertado a ela por algum devoto do candomblé. Em seguida o cansaço lhe toma, mas ele segue firme madrugada adentro, olhos esbugalhados, petrificados de desejo.
O dia amanhece e ele sem direção. Um resto de discernimento sufocado pela luz ainda ressoa atroz. Ele precisa dormir. Consegue em uma farmácia um sonífero forte. Já em casa procura o chuveiro. Lava seu corpo de areia fina da madrugada. O dia precisa morrer. “Eu desejo que sempre seja madrugada. Quero ter forças para morrer da impossibilidade desse amor. Quero nunca mais ter passado, nem neblina arrogante em meus olhos”. A sua mentira formata uma visão de acordo com a desigualdade do presente. As coisas nunca saem conforme o combinado. A sua natureza recria o devaneio constante desse amor impossível. Aumenta a loucura ao som das gaivotas. A neblina insiste, sonha a realidade nua tom disforme de insegurança, adentra a possibilidade de tornar verdade esse amor, trancafiado em pele de mar e água que não se bebe. Ele desatina ardente sem sol. Destino de tolo.
A sua casa está mexida, revirada, sem forma, danificada de certezas que nunca chegam. O que deseja é ser amante dela. Poderia marcar o dia que quisesse. A hora, a trilha sonora do primeiro beijo. Ela está no comando. Buscou o espelho e se perdeu. Não se via. Não se reconhecia. Vendeu sua alma por aquela crença, mas crer consumiu-lhe o ser. Uma boa parte de seu passado havia se esvaído, se diluído à beira mar.
Deitou pensativo. Conseguiu relaxar e dormiu. Seis da tarde. O tempo lá fora é o mesmo quadro da noite passada. Neblina sem álcool, átomos de lágrimas... Apanha uma maçã, troca de roupa e sai à procura de sua amada. Ela costuma demorar. Põe-se com destreza a construir à beira mar um castelo de sonhos, de cômodos largos e cores silvestres. A primeira noite passa. A segunda, a terceira... Na décima quinta noite ela aparece. Ele a olha sem reconhecê-la. Ele diz: "Você mudou. Algo mudou em você, não sei... Construí e reconstruí esse castelo de areia pra nós morarmos. Sonhei, mas você mudou... Eu até gostaria de saber por quê?" Ela nada diz. Ele já não tem mais forças. Só os seus olhos agora dizem. A sua volta, vários outros corpos dilacerados de amor como o seu. Ele pergunta pra ela: "Há um lugar específico para quem morre de amor? Quem são estes que padecem ao meu lado?". Ele não houve mais nada, nem mesmo a canção que era cantada por ela todos as noites quando chegava.
Pela primeira vez ela saiu do mar em busca dele. Nua, de cabelos escorridos, beleza endêmica, angelical. Toma-o nos braços e entra no mar. Ele, embriagado do cansaço da morte não percebeu que ela veio buscá-lo em seu sonho.


Marcos Vidal

2 comentários:

  1. Sem adornos para esse comentário:
    Caralho! Isso é foda!

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  2. Bom poder voltar a ler seus textos, esmo que sejam os do baú ou os recém saídos da fornalha.
    talentoso, esse nêgo!!!!!sou fã!!!!!

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