Medo de pegar no sonho, de transcreve-lo em
minha pele, de olhar em seus olhos e achar que tudo acabou. Os instantes são
pra ele, as expectativas são pra ele. Ah o sonho, leve feito flor de algodão a
cruzar os ares no primeiro sopro. Medo de olhá-lo de perto, de sentir seu
cheiro e seguir com ele. O boicote é tão natural que o sonho vira eterno,
desses que circundam a mente até quando se está a dormir. Embora todas as rezas
sejam para a saúde dele, o mantenedor de vibrações e saúde mental, às vezes
foge dentro de um outro aprendiz de ilusão, a enfeitar de pronto, a luz
imaginária das manhãs que se vão com o tempo. Coisa fugidia, passageira, entre
as muitas ilusões; primeiro o sonho nunca se mostra na primeira pergunta.
Perdido no labirinto da mente miserável, apetece uma camuflagem sempre que o
cenário se apresenta entre um déjà vu e
outro, entre sombras, a clareza da beleza de poder ser e ver a sua realização. Ele
precisa em seguida tornar a esperar como se fosse um presente a nutrir
a alma humilde, em busca de descanso, embora o som que venha da fantasia que o
sonho provoca seja de uma sinfonia das mais belas entre Mozart e Bach, ou mesmo
do canto simples de um passarinho sem grife, ali perto da janela. Entre nuvens que se moldam o tempo inteiro
ele aparece de maneira subliminar, a espreitar de olho torto a monstruosidade
da pálpebra que enverga em constante balé e se deixa mostrar a nuance de seus olhos.
Eu a querer saber das sobrancelhas grossas e lábios carnudos enquanto ele dança
e finge orgasmo a minha frente. O sonho é desses que chama o táxi e este logo
aparece, como se quisesse esfregar na cara de quem riu de sua capacidade de
construir o instante. O sonho entorta os passos de sacanagem, tropeça pra ser
segurado, mesmo que seja pelas mãos já velhas e cansadas do meu corpo que já dá
sinais de fraqueza e arrepio em relação ao seu charme. Eu tenho medo de me
declarar e ele não entender os meus anseios e dormir sem viver ou ouvir a minha
história, construindo cada detalhe, discurso fremente para uma plateia
heterogênea a me aplaudir no fim, a pedir bis. O sonho sentiu que eu falava
dele. Escondeu-se no jardim entre bromélias e jasmins, logo à frente da
figueira um fila de formigas espera por folhas e contornam sua pegada. O sonho
tem um pisar firme, embora nunca consiga sentir ou mesmo intuir a sua direção
quando foge. Espantado, é capaz de ficar meses, anos sem dar as caras, só pra
me ver chorar de aflição e saudade, sensação de se perder como se tudo fosse
acabar e a morte fazer sentido. O sonho é cruel, ele sabe tornar-se escuro
quando a aflição invade canções e camas, sem me deixar dormir ou contemplar a
natureza quando estou no campo. Quando viajo e me ausento, quando estou
distraído, quase cego pro mundo, ele me atravessa, segura o meu reflexo diante
do espelho e me faz sentir a vida inundando o fragmento do dia mais próximo do
que podemos chamar de felicidade, desses instantes em que o sol se mostra entre
tudo, claro e vivo. O sonho vem de antes, espécie de expiação a me acompanhar
de outras vidas, normalmente são sonhos impossíveis, que fazem penar e refletir
pra saber se somos mesmo feito de carne e osso. O sonho é tão infantil às vezes
que corre pelo quintal a exigir que brinque de pique-esconde com ele, e eu ali,
a contar de um até três pra ver se consigo depois acha-lo, antes mesmo de eu
conseguir bater: um, dois, três sonho, atrás da árvore. Nunca consigo
descobri-lo, e me pego chorando muitas vezes no primeiro degrau da escada,
junto ao portão velho e enferrujado que se vai nas minhas lembranças; quando
pequeno fingia gostar de tudo só pra sorrir o dia inteiro e estar perto de todo
mundo. Quando se é criança e a inocência ainda circula pelos olhos, ele parece
ficar mais próximo, coisa de herói que se mostra só quando o clímax costuma
acontecer, quando as coisas se mostram quase diáfanas sob o cristal dos olhos. É
como se quisesse deitar-me com ele, numa espécie de incesto, de alisar suas
partes em busca do meu próprio prazer, a descobrir no primeiro toque a vida
adulta a circundar a quebra de uma era, a da inocência. O sonho tem muitas
fantasias e máscaras. Quando penso que aprendi a reconhecer os seus trejeitos,
logo ele muda de voz e manca com a outra perna fingindo ser outra coisa, menos
o meu sonho, mas nunca aquele que me fez prestar atenção em mim, quando da
primeira vez se apresentou. Logo senti vontade de me cuidar, de gostar mais de
mim, essa coisa que chamam de vaidade, sim. Meu deus, como tudo era formidável
e constante. Ele me ensinou a olhar as coisas, a sentir o seu cheiro, a guardar
sempre o que tenho de melhor, como se tudo fora de mim não tivesse valor e nem
existisse. É claro que me assalta enquanto durmo, me alisa enquanto estou morto
pro sono. Quando acordo sei que esteve por aqui, porque costumo sorrir quando
ele faz assim. Podem me chamar de pervertido, mas ele vem sempre quando estou a
fim de fingir que estou triste. Até porque, de tanto fingir costumo ficar e
cair em si das coisas vazias e sem nexo, fora da tela dele, do sonho. Ele nunca
quis enxergar com os meus olhos, embora diga que está sempre em mim e comigo.
Mentiroso, eu digo, você não tem estrelas nos olhos, não sabe que as coisas
estão fora desse altruísmo esperançoso que circula pelo teu desejo me fazer teu
cumplice. Ah sonho, por que você se vai quando podíamos amanhecer abraçadinho e
mais tarde poder tomar um chocolate quente, nesse inverno que resseca a pele e dói
os ossos? Só ouço a porta bater ao longe e os cabelos dele a balançar lá
embaixo, bem antes de pedir que volte mais tarde. Ele me faz bem porque nunca
tenho a sensação de estar só, embora seja este mesmo a fluidez com que a
sensação me invade e me toma. Mas sabe quando você está para tomar uma decisão,
e mesmo que seja só inspiração, você sabe que precisa ir adiante? Pois é, ele
quando chega, não tem futuro certo, logo a decisão já aparece tomada e
calculada, mesmo que haja prejuízo. O sonho é bem cruel, mas de uma sabedoria
invisível, ele flerta com a minha ânsia quase sempre, embora eu nunca preste
atenção no tempo escorrendo, sim, porque essa coisa de ir apenas por ir, cansa.
Tenho enfrentado muitas coisas por ele. Gostam de alimentá-lo com nomes:
felicidade, gozo, alegria, paz interior, etc., ai, tanta coisa boba que me
irrita. Basta o tempo passar e logo perguntam: e o sonho? Porra, não sei mais
dele. Nunca me deu valor, fingiu que eu era, mas nunca me reconheceu, nunca me
disse um oi, tá, andou pelas esquinas a me espiar pra voltar pra casa sozinho,
mas e daí, muito pouco. Eu gritei e morri de amor, nunca me traí pra seguir adiante
com ele. Briguei com todo mundo, fui xingado, mas de nada adiantou. Ah sonho,
se você soubesse o quanto eu ainda te amo... mas eu não posso mais. A partir de
hoje fecharei a porta dos meus sentidos.
Marcos Vidal